Claro, não é preciso pensar muito para perceber que não dá para levar tal euforia a sério. Nunca é demais lembrar que, enquanto a desiguldade social não for combatida com o mesmo afinco com o qual as forças policiais sobem os morros em busca de traficantes, o exército do crime sempre terá soldados prontos para matar e morrer, perpetuando o círculo vicioso já existente.
O espectro da guerra está presente no cotidiano, nas expressões usadas para falar dos acontecimentos violentos no Rio e que ganharam maior força nesta semana: guerra ao tráfico, invasão, ocupação, território, conquista... Nos discursos das autoridades políticas e das forças de segurança, palavras que parecem saídas de soldados dos EUA chegando ao Iraque: “Trouxemos a liberdade”, “O Estado retomou a Vila Cruzeiro”, etc... De nada valerão tais palavras se seguirem o exemplo dos ianques no Oriente Médio.
Depois dos ataques promovidos durante a semana por traficantes na cidade e na Baixada Fluminense, supostamente em reação às chamadas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), a imprensa – em especial a internacional – destacou a insegurança na cidade, que sediará jogos da Copa de 2014 e receberá a Olimpíada de 2016. A capacidade do Rio para acolher tais megaeventos, claro, foi questionada. Daí, deve ter vindo o principal motivo para o Estado compensar sua ausência crônica das periferias e preparar a reação.
Então, veio o revide, com cerco e posterior invasão às comunidades da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão – aparentemente, bem sucedidas. Mídia e autoridades comemoram como se fosse o começo do fim do crime no Rio de Janeiro e emplacam expressões demagógicas uma atrás da outra. Mas euforias à parte, há perguntas que não querem calar.
Sim, de fato, é difícil ver Polícia Militar, Civil, Federal e forças militares atuando juntas, em sintonia. Mas a dúvida cruel que fica neste caso, a princípio, é: por que tal sincronia não ocorreu antes? O que faltou para que o mesmo ocorresse no Morro dos Macacos, em 2009, poucos dias após a escolha do Rio para os Jogos de 2016?
A essas e outras pergunta as autoridades preferem não responder – se é que saberiam como fazer isso. Em vez disso, por exemplo, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, prefere afirmar às câmeras da mídia nacional e internacional que a tomada do Complexo do Alemão significa o início do processo para "recuperar 30 anos de abandono das comunidades carentes". Já o prefeito do Rio, Eduardo Paes, anunciou que vai instituir o dia 28 de novembro como "data de refundação" da cidade por causa do sucesso (até agora) da operação.
Ainda no campo das demagogias pós-triunfos, as autoridades preferem fazer promessas de que, se conseguiram “voltar” ao Alemão (pelo menos aqui admitem a existência da omissão do Estado , mesmo que sem usar tais palavras), podem fazer o mesmo com as comunidades da Rocinha e do Vidigal; ou então afirmar que a próxima invasão será a de “serviços públicos”. Tudo muito bonito e comovente, mas alguns meses bastarão para constatar se as promessas feitas diante das câmeras e gravadores serão de fato cumpridas. A população tem o direito de cobrar e o dever de ficar de olho.
Ainda sobre a população - lado mais fraco da corda e que costuma sofrer tanto na mão de bandidos quanto apanhar e até mesmo morrer por meio do Estado que deveria protegê-la -, o medo de “esculachos” – gíria que designa os abusos de autoridade cometidos por agentes policiais – que existia durante as operações não deixará de existir imediatamente. Já existem relatos de truculência das forças de ocupação durante a incursão na Vila Cruzeiro. A polícia tem um longo caminho a percorrer no sentido de mudar de vez a imagem truculenta – quando não de repressora e assassina – perante à população mais carente, que habita tais comunidades. Se o vai trilhar, o tempo se encarregará de dizer.
Os próximos meses serão decisivos. É inegável que o governo do Rio e as forças policiais ganharam um voto de confiança da sociedade no combate ao crime organizado e pelo menos tentar amenizar o abandono da periferia. Mas tal crédito recebido deve ser cobrado com juros nas próximas faturas – e o calote do governo ou o pagamento dessa dívida com dinheiro sujo (violência, descaso, desrespeito à pessoa humana, indiferença, não-cumprimento das promessas) não pode ser aceito em hipótese alguma.