terça-feira, 2 de novembro de 2010

Quando o luto vira luta

Na linguagem policial, “auto de resistência” é quando um policial mata um opositor em legítima defesa – mas que, na verdade, também é usado para encobrir abusos cometidos pelos agentes contra inocentes. Já o livro “Auto de Resistência” dá outro significado à expressão, o de resistência e luta contra a violência e a impunidade. O luto que vira luta.


O livro, organizado por Barbara Musumeci Soares, Tatiana Moura e Carla Afonso, é resultado de uma das atividades do Projeto de Apoio a Familiares de Vítimas de Chacinas, desenvolvido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro) e pela Universidade de Coimbra, com apoio da Fundação Ford.



A publicação dá voz aos familiares (em sua grande maioria, mulheres) das vítimas de chacinas e casos de violência que podem ter caído no esquecimento para a imprensa, opinião pública ou mesmo da Justiça – chacinas do Acari, Maracanã, da Baixada, Vigário Geral, Candelária, entre outras. As histórias contidas no livro trazem só uma amostra do drama vivido pelas famílias das vítimas, já que o problema não é exclusividade do Rio e da Baixada Fluminense.

Em “Auto de Resistência” o luto pela morte e desaparecimento de entes queridos após ações da polícia torna-se o combustível na luta pela resolução da morte de cada vítima. Mas, sobretudo, torna-se também uma forma de impedir que esses casos caiam no esquecimento e evitar que outras pessoas sofram a mesma dor carregada por esses familiares.

Outra fonte importante de energia são as mensagens de apoio vindas de diversas partes do Brasil e do mundo que enfrentam problemas semelhantes aos existentes no Rio, foco do livro, e em outras cidades brasileiras e no exterior.

Combater esse bom combate não é tarefa fácil. Precisam provar a inocência da vítima, buscar provas às vezes por conta própria; têm de acompanhar processos tramitando por anos em tribunais, muitos deles ainda sem solução; precisam ser mais fortes do que o desânimo, o desgaste físico e emocional, superar quadros de depressão e vencer o vazio deixado em suas vidas pelas vítimas – a própria diagramação do livro, com amplos espaços em branco, parece traduzir o vazio que as vítimas deixam na vida de familiares e amigos. Precisam continuar vivendo para permanecerem na luta e não desamparar aqueles que ainda dependem delas – outros filhos, marido, netos e outros familiares.

Há casos de assassinatos que sequer chegaram a virar inquéritos policiais, que praticamente não existem do ponto de vista jurídico; são raros os casos que dão origem a denúncias no Ministério Público; ainda mais escassos são os que levam os criminosos ao banco dos réus; a condenação e prisão dos culpados pode ser considerada um milagre.

Mesmo com tantas dificuldades jurídicas, materiais e pessoais, o livro relata avanços importantes na luta contra a impunidade. Entre eles: maior repercussão e espaço – mesmo que ainda tímidos – em meios de comunicação; casos já conhecidos de condenações e detenções de culpados pelos crimes; reconhecimento e apoio internacional por parte de organismos internacionais de defesa dos Direitos Humanos; além do intercâmbio e assistência mútua com outras entidades organizadas de vítimas da violência do Estado no Brasil e pelo mundo afora.

Conhecer tais histórias é uma boa forma de tomar consciência – mesmo que de forma brusca – dos efeitos do flagelo da violência. Serve também como um chamado para que cada um, da maneira que for possível, junte-se ao coro dos familiares das vítimas no pedido de justiça e de uma sociedade mais solidária e menos violenta.

Livro: Auto de Resistência – Relatos de familiares de vítimas da violência policial
Organização: Barbara Musumeci Soares, Tatiana Moura e Carla Afonso
Editora: 7 Letras
Preço: R$ 38

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